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O Primeiro Mártir do Coliseu

 O Primeiro Mártir do Coliseu

 

"O sangue dos mártires é a semente dos cristãos." — Tertuliano

 

As ruínas da cidade incendiada ainda fumegavam nos montes Palatino e Esquilino, quando Nero concebeu a ideia de satisfazer a raiva do povo com o sangue dos cristãos. Esse monstro, cujo nome é associado a tudo o que é cruel e impiedoso, foi o primeiro imperador romano a decretar a perseguição aos inofensivos servos de Deus. O édito foi emitido; o clamor, em toda parte, era o extermínio do cristianismo. Todo o mundo pagão armou-se contra ele. Mal fora promulgado o terrível decreto, e as pessoas, como que possuídas por demônios, lançaram-se em fúria desu­mana contra os inocentes e indefesos seguidores do Crucificado. A frené­tica resolução de desarraigar o cristianismo começou em Roma e difun­diu-se através de cada província e cidade do Império. Membros da mes­ma comunidade, e até da mesma família, converterem-se em delatores e executores uns dos outros. Nestas páginas acham-se registradas duas ou três ocasiões em que pais tentaram em vão, com todo tipo de tortura e castigo, abalar a lealdade de seus tenros e inocentes filhos. Em cada cidade e aldeia, foi concedida licença irrestrita aos magistrados para pilhar, aprisionar, torturar e destruir os cristãos; e esses oficiais subordi­nados, por sua vez, delegavam poder aos lacaios mais cruéis a seu serviço. O mesmo aconteceu, em época recente, na China e no Japão.

 

"Foi proclamado, além disso", afirma um mártir citado por Eusébio, "que ninguém deve experimentar qualquer cuidado ou pena por nós, mas que todos devem pensar e comportar-se em relação a nós como se não mais fôssemos gente".

 

Esses horrores não cessaram com os tiranos que lhes deram início. Por trezentos anos, os poderes do Inferno continuaram a sua guerra contra a Igreja, com maior ou menor fúria levantando e caindo, como as ondas do oceano; num momento, desabando com o estrondo e a espuma dos vagalhões na tempestade, e no outro, calmo e tranquilo como um lago.

 

Os escritos de Basílio sobre a perseguição de Deoclécio dão uma ideia geral do que foram as crueldades e os horrores daqueles dias.

 

"As casas dos cristãos eram deixadas em ruínas; seus bens, pilhados. Seus corpos caiam nas mãos dos ferozes lictores, que os dilaceravam como bestas selvagens, e arrastavam as matronas pelos cabelos através das ruas, insensíveis às súplicas por clemência, viessem elas dos idosos ou daqueles em tenra idade. Os inocentes eram submetidos a tormentos reserva­dos apenas aos mais vis criminosos; os calabouços eram lotados com os habitantes dos lares cristãos, que agora jaziam desolados; os desertos sem caminhos e as cavernas das florestas enchiam-se de fugitivos, cujo único crime fora a adoração a Jesus Cristo. Nesses dias trevosos, filhos traíam os pais, e pais acusavam a própria prole; os servos obtinham a propriedade de seus senhores por denunciá-los, e um irmão buscava o sangue do outro. Nenhuma reivindica­ção ou vínculo de humanidade parecia ser reconhecido, tão completa era a cegueira que a todos acometera, como se fora uma possessão demoníaca. Além disso, as casas de oração eram profanadas por mãos ímpias; os altares mais sagrados, derrubados. Nenhuma oblação a Deus era feita; nenhum lugar foi deixado para os mistérios divinos; era só tribulação, uma escuridão lutuosa calava todo consolo; o colégio sacerdotal foi disperso; nenhum sínodo ou concilio pôde reunir-se, por medo da matança que assolava em toda parte; mas os demônios celebravam suas orgias e poluíam tudo com a fumaça e o sangue de suas vítimas".

 

As catacumbas são o último memorial dessa época terrível; aquelas cavernas lúgubres e as escuras passagens nas entranhas da terra são o mais precioso registro da Igreja; suas lajes toscas, com a palma e a coroa, falam de aproximadamente um milhão de mártires.

 

O Coliseu é outro testemunho dos triunfes do passado. Ele surgiu em meio aos horrores da perseguição, e tornou-se o campo de batalha onde a inocência e a fragilidade lutavam com a tirania e a criminalidade. O sangue, os milagres, e as vitórias da Igreja Primitiva lançaram uma reminiscência sagrada à volta dessas veneráveis ruínas, que nos faz aproximar com uma espécie de temor religioso. Supõe-se que milhares de mártires verteram seu sangue em suas arenas, embora os registros exatos não tenham chegado até nós. Dentre esses mártires, havia pessoas de ambos os sexos, e de diversas posições sociais: eram príncipes de sangue real, bispos, matronas de idade avançada, donzelas no rubor da juventude e da inocência, e crianças de tenra idade. A sua coragem e brandura, o seu triunfo sobre a dor e a morte, foram eloquência que plantou aquela cruz, que agora projeta a sua sombra na desolada arena. Os atos dos heróis do Coliseu preenchem as páginas mais interessantes e maravilhosas da história da Igreja Primitiva. São belos, eloquentes, tocantes, e estabelecem um notável contraste entre a força, a sublimidade e a magnificência do cristianismo, e a fraqueza, a vileza e a estupidez da infidelidade; são evidências incontestáveis da natureza divina da Igreja de Deus.

 

Mas quem foi o primeiro mártir do Coliseu? A resposta a esta indagação envolve a resposta de outra igualmente importante. Quem projetou e construiu essa estupenda obra-prima da arquitetura? Que grande mente concebeu esta estrutura gigantesca, dispôs as suas proporções tão primorosa ordem e simetria, edificou arco sobre arco e bancada sobre bancada, cortou lavrou uma montanha de calcário, na mais sublime obra da arte antiga? O que é dito do esplêndido anfiteatro não redunda em louvor de algum grande homem, cujo talento e habilidade superiores deram nascimento à construção? Quem é ele, para que lhe levantemos a efígie no altar dos gênios, e lhe ofereçamos o incenso da adulação e do elogio?

 

O arquiteto do Coliseu não carece do ouropel do louvor humano; contudo, deixe os amantes da arte sussurrar-lhe o nome com reverência, porque ele foi um cristão e um mártir. É um fato estranho que, por aproximadamente dezessete séculos, o arquiteto do Coliseu permanecesse desconhecido. Certamente uma construção de tamanha magnitude, contendo tantos detalhes e medidas, deve ter sido obra de uma mente superior. Todo edifício de renome reflete honras ao seu arquiteto; a fama dos grandes construtores do passado ainda brilha nas páginas da história, embora as estupendas obras de sua genialidade já hajam desaparecido.

 

Marangoni, um erudito historiador do século passado, escrevendo na Cidade Eterna, e à sombra do próprio Coliseu, fez esta bela observação: "É algo digno de reflexão que, não obstante a magnificência desta obra, tão excelente em sua arquitetura, tão admirável em sua construção, a até mesmo considerada por Marcial a mais maravilhosa de todas as maravilhas do mundo, nem ele, nem qualquer outro escritor das eras seguintes, tenham mencionado o seu grande arquiteto".

 

Marcial, como todos o sabem, foi um poeta romano que se distinguiu nos reinados de Vespasiano, Tito, e Domiciano. Ele exalta com pomposos elogios a memória de Rabírio, por sua habilidade em construir uni grande anexo ao palácio dos césares, durante o reinado de domiciano. Afirma em seus escritos que este arquiteto ergueu um palácio que alcançava o firmamento e refletia a glória das estrelas; que o seu gênio penetrara os céus distantes, e copiara das fortificações celestes a magnificência e a majestade de seu projeto. "Com muito mais razão", prossegue Marangoni, "não deveria ele imortalizar o nome e a memória do grande arquiteto do Coliseu - uma construção muito superior ao palácio da Palestina, e edificado por um homem tão celebrado quanto conhecido do próprio Marcial?"

 

Marcial não fez simplesmente uma alusão casual e passageira ao Coliseu; ele constituiu-se o seu panegirista. Os seus melhores poemas foram escritos sobre os horrores do anfiteatro; contudo, enquanto exalta com bombásticos louvores os méritos de um arquiteto inferior, por haver acrescentado uma nova ala à casa áurea, deixa passar em silêncio o nome que deveria ser escrito em letras de ouro em sua estrofe sobre o Coliseu. O silêncio de Marcial e dos escritores contemporâneos não é um enigma da história?

 

Dezessete séculos se passaram sobre os muros imperecíveis deste estupendo monumento da antiguidade; turistas e estrangeiros afluíram de todos os pontos da bússola para fitar com admiração as ruínas, que imortalizaram em seus escombros um arquiteto desconhecido. Em vão, os amantes da grandeza passada leram histórias e registros antigos, à procura do nome deste homem. Debruçaram-se atentamente sobre as inscrições apagadas e as lajes de mármore rachadas, que ainda se agarram às velhas paredes, esperando achar ao menos um efêmero elogio ao construtor. Porém o esquecimento eterno ter-lhe-ia amortalhado o nome, não fosse uma descoberta acidental trazê-lo à luz.

 

Durante escavações feitas na catacumba de São Agnes, na estrada de Nomentan, uma rude tumba foi descoberta. Estava fechada por uma lápide de mármore ostentando a figura da palma e da coroa, e junto a ela, um frasco de sangue, o inconfundível testemunho do martírio. A tosca inscrição declarava: GAUDÊNCIO, o arquiteto do Coliseu.

 

Eis aqui a explicação para o estranho silêncio de Marcial e dos historiadores pagãos contemporâneos seus. Gaudêncio era um cristão e um mártir; pertencia a seita odiada e perseguida por todo o poder do Império. Provavelmente, foi uma das primeiras vítimas a ter o sangue derramado na areia do anfiteatro.

 

O imperador romano pensava não apenas aniquilar o cristianismo, mas obliterá-lo da memória humana. Nenhum ato público era permitido em favor dos cristãos; abrigá-los, elogiá-los, ou imaginar que fossem capazes de qualquer coisa grande e nobre, era traição. O poeta bajulador, que buscava somente os sorrisos de César, conhecia o tema que o agradaria; não arriscaria a vida expressando simpatia pelos perseguidos seguidores da cruz. Assim, Gaudêncio partiu sem um monumento. Os tímidos amigos deitaram os seus restos na tumba de um mártir, nas escuras criptas das catacumbas, e na débil esperança de que um dia a posteridade reconhecesse-lhe o gênio e o talento, rabiscaram rudemente, sobre a laje de mármore que o cobria, que ele fora o arquiteto do Coliseu.

 

Não surpreende que os restos mortais de Gaudêncio, bem como o de centenas de outros nobres mártires, fossem depositados silenciosamente, e aparentemente sem honras, nas me­lancólicas galerias das catacumbas. Numa época em que tudo era horror e confusão, quando os trêmulos sobreviventes mal podiam, em segredo e na escuridão da noite, reunir os restos de seus amigos martirizados, não havia oportunidade para registrar lhes os triunfes e homena­gens em epitáfios estudados, ou monumentos imperecíveis.

 

Há milhares de santos brilhando no resplandecente grupo vestido de branco, e que "seguem o Cordeiro por onde quer que vá", desconhecidos da Igreja militante, a não ser pelo nome. Contudo, encontramos nos registros das catacumbas alguns versos curtos, porem tocantes, homenageando alguns mártires em particular; talvez a rude composição de algum amigo sobrevivente, lavrada na pedra dura por uma mão delicada, à baça luz de uma lâmpada a óleo. Tais eram os versos na tumba de Gaudêncio:

 

Sic premia servas Vespasiane Dire

Premiatvs es morte gaudenti letare

Civitas vbi glorie tve avtori

 

Promisit iste dat kristvs imnia tibi

Qui alivm paravit theatrv in celo

 

Eis aqui um panegírico em poucas palavras, porém simples e sublime. Ele declara que nosso herói foi vítima de grosseira ingratidão, e embora o seu gênio tenha contribuído para a glória da cidade, a sua recompensa foi a morte cruel. O cristão que entalhou este epitáfio parecia consolar-se com a glória e apreciação dada ao amigo no outro mundo. "César prometeu três grandes recompensas", parece dizer ele, "Mas o pagão foi falso e ingrato. Aquele, que é o grande Arquiteto do céu, e cujas promessas não falham, preparou para ti, em recompensa à tua virtude, um lugar no teatro eterno da cidade celestial".

 

À primeira vista, estes versos não parecem possuir toda a importância que lhes atribuí­mos mas um momento de reflexão provará que são um dos mais cândidos registros do passado. Não havia outro teatro construído no tempo de Vespasiano, a não ser o Coliseu; ele era a glória da cidade, e ainda o é em suas ruínas. Vespasiano não perseguiu os cristãos, mas houve mártires em seu reinado. As leis de Nero não tinham sido revogadas, e ainda eram executadas, com maior ou menor violência, em diferentes partes do Império. Lemos a respeito de Apolinário, bispo de Ravena, no martirológio romano de 23 de julho: "quisub Vespasiano Caesaregloriosum martyrium consummavif. Eusébio, em sua Histó­ria da Igreja (livro III, cap. 15), assim como Barônio (ano 74), asseveram que Vespasiano levantou uma terrível perseguição contra os judeus; mandou matar todos os que se diziam descendentes de Davi. Para os gentios daquele tempo, cristãos e judeus eram a mesma coisa. Dion Cássio afirma que Domiciano mandou matar aqueles "qui in mores Judeorum transierant" (livro -T). isto e, aqueles que se tornaram cristãos. Líderes superficiais são inclinados a duvidar da inferência deste epitáfio. Mil questões podem ser feitas, e muitas objeções levantadas, mas sem entrar num tedioso, e talvez desinteressante exame da questão, será suficiente declarar que é a opinião aceita de todos os antiquários modernos, que este epitáfio só pode se referir ao arquiteto do Coliseu. Dentre os autores que defendem esta opinião, sem duvidar, estão Arringhi, Nibe, Rossi, Marangoni e Gerbet.

 

A laje que contém esta inscrição pode ser vista atualmente na igreja subterrânea de Santa Martina, no Fórum. Martina foi uma das virgens expostas às bestas selvagens do Coliseu. A capela subterrânea é uma joia da arquitetura, e o último monumento da genialidade e da munificência de Pietro da Cortona, que a projetou e construiu. É ricamente ornamentada, e possui muitas peças de belo e excelente mármore. Entre os ornamentos que lhe adornam as paredes não há um tão interessante quanto a rude lápide de Gaudêncio.

 

Nada se sabe de sua vida ou do modo como morreu; a sua história, o seu martírio, e o seu panegírico acham-se contidos neste breve e obscuro epitáfio. A Igreja blasonou em seus registros, com letras brilhantes, os nomes desses heróis cujos talentos ou triunfos foram a glória daqueles tempos primitivos; dentre eles, pode-se reconhecer o arquiteto da maior obra da antiguidade, o cristão e mártir Gaudêncio.

 

Bibliografia A. J. O'Reilly